ENTRE A LUZ E A SOMBRA: Análise Crítica do Ondjango do Tribunal Constitucional e os Dilemas do Constitucionalismo Angolano

OPINIÃO
Candumbo “Homen Novo”
A recente mesa-redonda promovida pelo Tribunal Constitucional, sob a chancela da sua Veneranda Presidente, Dra. Laurinda Cardoso, marcou um momento de rara intensidade no debate jurídico-político nacional. Como um espelho colocado no centro da sala da República, o Ondjango do Tribunal Constitucional reflectiu, com rara nitidez, não apenas a memória do constitucionalismo angolano, mas as suas fracturas, silêncios e promessas não cumpridas.
Com moderação do Dr. Carlos Feijó, que acumulou as funções de prelector e curador da memória constitucional viva, o painel contou com intervenções relevantes da Dra. Imaculada Melo, do Dr. Rui Ferreira, do Dr. Carlos Silva, do Dr. Bornito de Sousa, do Dr. Fernando Oliveira e do Deputado Silvestre Samy. A composição do painel, por si só, já era uma promessa: estavam ali, ao vivo, alguns dos actores matriciais — uns fundadores, outros herdeiros — da nossa engenharia constitucional desde 1975. A afluência massiva de membros do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do meio académico deu à iniciativa um carácter quase fundacional, como se estivéssemos a assistir a um novo prefácio do constitucionalismo angolano.
A Dra. Laurinda Cardoso merece, neste contexto, dupla homenagem: por ter celebrado mais um aniversário no próprio dia do evento, e por estar a trilhar, com abertura e coragem, uma liderança que busca imprimir marca e legado ao Tribunal Constitucional. A criação de espaços como este Ondjango representa um sinal de abertura, mas também um gesto de ousadia institucional num tempo em que muitos preferem o conforto da inércia.
PONTOS POSITIVOS
Um dos méritos inegáveis do evento foi permitir, talvez pela primeira vez de forma tão aberta, a saída da sombra daqueles que moldaram os alicerces do Estado angolano contemporâneo.
Pela primeira vez, os “donos do sistema” – para usar a expressão popular – deram rosto e voz ao processo de construção do nosso edifício constitucional.
Não faltaram, inclusive, as menções aos assessores estrangeiros que participaram nos bastidores desse processo, revelando os meandros por vezes opacos da génese constitucional angolana.
O país, por breves momentos, pôde ver, sem filtros, quem costurou o tecido normativo e político do Estado angolano.
Destaca-se com particular apreço o Dr. Rui Ferreira, cuja intervenção foi marcada por uma rara honestidade intelectual, uma assepsia ética que, infelizmente, tem faltado ao nosso discurso público.
Ao reconhecer publicamente, com desarmante humildade, que ele e os seus colegas, à época da criação do sistema, eram jovens recém-saídos da universidade e que sequer cursaram Direito Constitucional, deu uma verdadeira lição de higiene intelectual.
Esta confissão não o fragiliza: antes, humaniza e dignifica, mostrando que os erros fundacionais não nasceram da maldade, mas da inexperiência e da pressa de tempos revolucionários.
Não menos disruptiva foi a contribuição do Deputado Silvestre Samy, que desnudou, em tom quase confessional, o carácter decorativo e, por vezes, farsesco de algumas das missões parlamentares no exterior.
Com notável coragem, denunciou o desperdício de recursos e o esvaziamento do papel do Parlamento nos processos de consulta constitucional: “viagens caras, vinhos portugueses e bacalhaus regados a champanhe”, para no fim, não serem ouvidos, nem tidos, nem achados.
O seu testemunho não foi apenas ilustrativo: foi profundamente simbólico.
O Ondjango também teve a virtude de iluminar a verdadeira razão do divórcio entre decisões políticas e impacto social real.
Ficou evidente que, enquanto as energias do sistema se gastam em disputas triviais, as questões de fundo — de natureza económica, social e de cidadania material — continuam relegadas ao fundo do poço.
O povo, destinatário último da Constituição, segue ausente da mesa onde os seus direitos deveriam ser servidos.
PONTOS NEGATIVOS
O primeiro foi a ausência de vozes dissonantes. A mesa-redonda, se não for plural, tende a resvalar para “clube de amigos”, onde todos se conhecem, todos se poupam e ninguém faz perguntas difíceis.
Faltaram os jovens constitucionalistas, economistas, os académicos fora do círculo habitual, os representantes da sociedade civil e das províncias.
O contraditório não é um luxo: é an alma do verdadeiro debate.
Outro ponto crítico foi a ausência de soluções. Muito se diagnosticou. Mas onde estão as propostas? Onde estão os remédios? Não basta dizer que o sistema tem falhas. É preciso indicar como consertá-lo.
Mais grave ainda foi o silêncio estratégico de algumas figuras que, pelo seu percurso, não podiam ter saído da sala sem prestar contas.
Além disso, persistiu uma postura perigosamente retórica: muita erudição verbal, pouca aplicação prática.
Um constitucionalismo que se limita a jogos de linguagem, a academismos estéreis e à glorificação do passado é um constitucionalismo estagnado, desconectado do seu propósito real: transformar a vida das pessoas.
A OPORTUNIDADE PERDIDA DO DR. BORNITO DE SOUSA
O caso do Dr. Bornito de Sousa é emblemático. Tendo ocupado cargos de Vice-Presidente da República, Ministro da Administração do Território e Líder parlamentar do MPLA — dele se esperava, com inteira legitimidade, uma prestação de contas institucional e histórica. Seria esta, por excelência, a tribuna onde o antigo governante poderia — e deveria — explicar ao país as razões estruturais e políticas que têm inviabilizado a realização das tão aguardadas eleições autárquicas.
Contudo, preferiu discorrer sobre o número de artigos da Constituição e explicar, com detalhe curioso, por que a versão final teve 244 e não os 243 originalmente previstos. Ainda que tal curiosidade possa entreter o espírito constitucionalista mais ortodoxo, revelou-se de uma pobreza política desconcertante, à altura inversa das responsabilidades históricas que carrega.
Num país onde as autarquias são uma promessa eternamente adiada, o silêncio selectivo é mais do que uma escolha: é um posicionamento político que, à falta de melhor nome, pode ser chamado de negação do tempo.
O SILÊNCIO TÉCNICO DO DR. CARLOS FEIJÓ
O mesmo se pode dizer do Dr. Carlos Feijó. Figura central do desenho institucional angolano, não foi apenas um jurista influente: foi Ministro de Estado, Chefe da Casa Civil do Presidente José Eduardo dos Santos, conselheiro político e académico com peso — a sua simples presença no Ondjango carregava um peso institucional e simbólico imenso.
Não era apenas um moderador: era, e é, um dos pensadores fundacionais do regime constitucional vigente.
É certo que a moderação exige contenção.
Entretanto, perdeu-se a oportunidade de ouvir um dos poucos que conhecem — por dentro — os mecanismos profundos do sistema.
Mas, quando a história chama, mesmo os moderadores são convocados a transcender o protocolo. E nesse sentido, esperava-se do Dr. Feijó — homem de pensamento estruturado e influência vasta — um esforço de síntese crítica, uma abertura de caminhos, ou ao menos um esboço do que seria, na sua visão, a refundação possível ou desejável do constitucionalismo angolano.
A história não perdoa as omissões estratégicas.
ZONAS DE SOMBRA
Acórdão n.º 319/2013, de 13 de Novembro de 2013.
Quando o Acórdão 319/2013 santificou que os ministros não podiam, mais, responder perante a Assembleia Nacional — mas apenas perante o Presidente —, deu-se, a partir daí, um corte simbólico com a tradição parlamentar africana, onde a fiscalização por via das interpelações, perguntas e comissões de inquéritos desempenham papel central na aferição da eficácia governativa e na protecção dos direitos sociais.
A Assembleia Nacional, viu-se, assim, privado de musculatura fiscalizadora da acção governamental.
Essa reconfiguração afectou directamente a execução do Orçamento Geral do Estado, cuja fiscalização (arts. 76.º a 104.º da CRA) tornou-se meramente ritualística sem o devido contraditório político.
Consequentemente, a afectação de recursos à saúde, educação e protecção social corre o risco de se tornar arbitrária, vulnerável a interesses clientelares ou alheios ao bem comum (ex: adjudicações directas para OMATAPALOS, CARRINHOS, etc).
Outrossim, a Constituição de 2010 consagrou, por exemplo, o planeamento (art. 91.º) como instrumento central de governação. Porém, em ausência de controlo real e efectivo da Assembleia Nacional, o planeamento pode degenerar em voluntarismo tecnocrático ou mesmo em projectos megalómanos sem correspondência com as reais necessidades da população.
OS GRANDES ARQUITECTOS DA CONSTITUIÇÃO DE 2010 — outrora discretos no seu silêncio — saíram agora da sombra para o Ondjango do constitucionalismo angolano.
O tempo pergunta: vieram prestar contas ou reescrever a narrativa?
Já agora, terá a Constituição de 2010 sido desenhada sob medida para PR José Eduardo dos Santos? Se sim, porquê usaram costuras envenenadas?
É certo que a CRA eliminou a eleição directa do Presidente, blindou a figura presidencial com imunidades amplas, reduziu a margem de actuação da Assembleia Nacional e concentrou todo o poder no Executivo presidencialista.
À primeira vista, foi um escudo perfeito — blindava o Presidente do escrutínio, da alternância e da contestação.
Mas como todo escudo que se torna demasiado pesado, ele acabou por imobilizar quem o carregava.
- Afinal, onde o sistema falhou? E quem o fez falhar?
- Por que, mal o Presidente José Eduardo dos Santos deixou o poder, a estrutura que o protegia o deixou vulnerável?
- Por que o deixaram cair no vazio institucional, se foram eles próprios os arquitectos dessa mesma estrutura?
- Foi a Constituição de 2010 concebida para blindar o poder ou para proteger o homem que os empoderou?
- Terá sido José Eduardo dos Santos um beneficiário ou, no fim, uma vítima do próprio sistema que ajudou a erigir?
- Qual foi, de facto, o propósito da concepção desse hiperpresidencialismo que, ontem, escudava o PR JES, mas que hoje fortalece o PR João Lourenço?
- Por que se forjou uma armadura tão rígida que, no fim, esmagou o próprio imperador?
- Por que não previram a sucessão? Ou será que confundiram lealdade pessoal com estabilidade institucional?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Ondjango do Tribunal Constitucional foi, inegavelmente, um sucesso institucional e simbólico.
Pela afluência de académicos, representantes do executivo, legislativo e Judicial, demonstrou que ainda existe fome de debate sério e sede de revisão crítica do nosso modelo constitucional.
E, nesse sentido, cumpre, reiteradamente, enaltecer a coragem e a inteligência da Veneranda Juíza Presidente, Dra. Laurinda Cardoso, por ter ousado abrir as portas da Corte à memória viva e à crítica construtiva, num dia que também marcou o seu aniversário — um símbolo duplo de renovação e liderança.
O Ondjango foi um marco.
Um momento de coragem institucional, de abertura simbólica e de partilha intergeracional.
Deve ser reconhecido como tal. Mas não pode ser o ponto de chegada.
Que seja o primeiro passo de um caminho mais longo, mais plural e mais honesto.
É preciso romper com o conforto do consenso entre elites.
É preciso que os debates deixem de ser espaços de autocelebração e passem a ser espaços de transformação.
E, sobretudo, é preciso que os protagonistas do passado compreendam que a história não é indulgente com os que se calam no momento de falar.
Se a Constituição é um pacto, então é hora de voltar à mesa — com todos os pratos, todas as vozes e, principalmente, todas as verdades.
Isto porque só haverá verdadeira Constituição quando houver, de facto, um país que a reclame como sua.
Contudo, se quisermos que este Ondjango não se limite a um exercício nostálgico, será preciso mais: mais vozes, mais ousadia, mais responsabilidade.
É tempo de transformar a escuta em acção, e os discursos em compromissos com o futuro.
Porque a Constituição não pode ser apenas um texto: precisa urgentemente de tornar-se um projecto de país.
O constitucionalismo angolano não pode continuar a ser um exercício elitista, centrado em si mesmo.
É preciso abrir as portas.
Trazer novos rostos.
Novas vozes, como as de Adlézio Agostinho, João Ramiro,
Yuri Quixina,
Domingos Paciência, Gilberto Mizalaque, Osvaldo Makumbi, Carlos Rosado,
António Ventura,
Carlos Veiga, etc.
E, sobretudo, é preciso fazer com que a Constituição desça do pedestal e caminhe lado a lado com o cidadão.
Se este Ondjango for apenas um gesto simbólico, voltaremos à estaca zero.
Mas se for o início de um novo ciclo — mais inclusivo, mais corajoso e mais comprometido com a verdade — então poderemos, um dia, olhar para trás e dizer: “Foi aqui que começou a mudança e se forjou o novo homen novo.”
Por Candumbo, aka “Homen Novo”